segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Depressão e Militância

Eu não escrevo muito aqui. Hoje, como todas as outras vezes, esse é só o lugar mais acessível. Não é fácil falar de mim, em grande parte porque eu não gosto. Talvez a escolha da plataforma se deva ao medo, medo de como um texto como esse seria lido e interpretado… Por amigos, parentes e até desconhecidos. Em uma geração que clama por manchetes e notícias rápidas, o esforço de abrir um link no facebook me dá um pouco de tranquilidade de supor que só vai ler até o fim quem tem real interesse, e não quem precisa emitir uma opinião sobre tudo. Mesmo assim, acho por bem deixar claro que não quero, neste caso, espelhar experiências esperando que o relato de uma pessoa possa ser usado por várias. Minha vida, minha experiência, minhas vulnerabilidades, minha militância, minha condição mental e emocional pertencem apenas a mim, e sem uma formação ou orientação especializada é só sobre mim que eu estou apta a falar nesse assunto.

Não se trata de um assunto inédito, nem mesmo tenho coisas novas a dizer sobre isso, e ainda é algo onde todos deveriam empenhar tempo. Ninguém consegue perceber o exato momento em que precisa pedir ajuda, ninguém quer admitir que não consegue lidar sozinho com… Bom, com o que quer que seja aquilo que não conseguimos lidar sozinhas. Quando finalmente admitimos pra nós mesmos que nossos ombros não suportam a carga, existe um período longo de culpa, de sentimento de fracasso, de lágrimas e tentativas que sabemos ser em vão, até que enfim - os mais fortes, bem estruturados… na verdade os mais sortudos - conseguimos nos mover o bastante para deixar alguém saber o que está acontecendo.

Resumo do meu processo bem sucedido, um processo com um desfecho difícil, mas positivo. E olhando para trás agora, quando eu me sinto muito mais saudável, parece incrível lembrar dos dias seguidos em que eu não saía da cama nem para ir ao banheiro. Mas nem toda história de depressão tem um final feliz, de fato, depressão é um vírus emocional, ela nunca vai embora é apenas controlado, manejado, tratado. Como AIDS, a aparência raramente revela o doente, e o estigma não nos permite comentar e nos faz esconder os sintomas sempre que podemos. Nós lidamos diariamente com o medo de que no dia seguinte levantar da cama seja novamente um esforço inumano.
No auge das minhas fragilidades eu costumava pensar que só ocupar a cabeça me salvaria, me distrairia, me traria de volta aquele gosto infinito pela vida, pelo dia, pela realidade. Mas como encontrar gosto pela realidade quando eu sabia que a realidade que me esperava era difícil, cruel e insensível? Nós não lamentamos, lamentar é um desperdício de tempo quando você poderia tentar mudar essa realidade. Nossos problemas sempre são pequenos comparados a realidades mais difíceis que as nossas. Nosso mundo cheio de pressões, cobranças, prazos, são nada perto de mundos mais perversos, mundos de pessoas em situações muito mais vulneráveis que as nossas.
Eu não entrei na militância de esquerda por acaso. Não passei a adolescência lutando corajosamente no movimento secundarista (como algumas pessoas parecem esperar de filhos de militantes, uma militância desde a tenra idade), tão pouco distraída entre o cinema com os amigos e Cavaleiros do Zodiaco às 17h30 da tarde. Meus pais nunca esconderam a dura realidade do mundo, mesmo quando me protegiam de cada ferida que essa realidade poderia me causar. Eles começaram em lutas sociais ainda mais novos do que eu sou hoje. Eles foram mãe e pai muito mais jovens do que eu sou hoje. Eles trabalhavam, cuidavam de mim, e - aos meus olhos na época - se engajaram em uma guerra ingrata que sempre trazia tão pouco sucesso, tão pouco resultado para tornar menos vulnerável uma maioria que não sabia ou não podia se proteger sozinha.
Dois adolescentes com uma criança não é fácil, e eu não fui uma criança particularmente fácil de lidar. Eu sei disso agora. Nós conversavamos francamente sobre tudo que eles não achassem impróprio para minha idade. Hoje eu vejo que essas conversas foram determinantes para minha melhora. Sempre saber sobre o pior do mundo e das pessoas, ao mesmo tempo em que era protegida disso me abriu os olhos para o sofrimento dos outros. Entender que sofrimentos não devem ser comparados, me abriu os olhos para tudo que eu precisava lidar e não queria.
Eu sempre brinquei que sou filiada ao Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras desde os primeiros anos de vida, por causa das muitas fotos de infância com estrelas e bandeiras vermelhas. Jovens, pobres e com uma filha, restava aos meus pais pouca opção que não me levar debaixo do braço para cada reunião, mobilização, protesto que eles participavam. Com 12, 13 eu acompanhei minha mãe enquanto ela visitava grupos de mulheres em comunidades rurais para organizar debates sobre empoderamento feminino e violência doméstica. Eu lembro de ouvir conversas em que meu pai falava sobre casos de exploração de trabalhadores rurais em fazendas de políticos do nosso estado, e de quadrinhos informativos sobre trabalho escravo que eu sempre lia quando tinha que esperar na sala dele por algum motivo. Eu via neles a militância pura. Duas pessoas que nunca demonstraram qualquer interesse em carreira política, ou qualquer “compensação” pelas horas, dias, noites, e incontáveis viagens que precisavam fazer em prol daquele mundo melhor que eles desejavam pra todo mundo.
Quando criança eu tinha soluções simples para problemas que eu achava que eram simples. “Se um homem machucou uma mulher, por quê não falamos pra polícia prendê-lo?”, “Se as pessoas estão morrendo de fome porque são pobres, porque não distribuímos o dinheiro do mundo todo, e assim todo mundo poderia ser rico?”. Na adolescência eu achava todos os problemas bobos. E daí se os garotos da minha turma me achavam estranha porque eu era alta? Quem liga se tenho que esconder que meu primeiro beijo foi com uma garota? O mundo tem problemas muito maiores do que eu não me encaixar nos padrões estéticos socialmente aceitos. E quando, pouco a pouco, provamos de verdadeiras vitórias dos movimentos sociais, quem era eu para me sentir mal quando milhares de vagas estavam sendo abertas na universidade e milhões estavam saindo da miséria?
Eu tive meu primeiro contato com a militância jovem no melhor momento possível. As pessoas que me rodeavam eram (e ainda são) as melhores possíveis. Mas minhas próprias inseguranças sempre seguravam meus passos mais atrás. Eu tinha a mesma visão de mundo dos meus pais, eu tinha a mesma orientação política, e como era de se esperar, os mesmos espaços de atuação. Eu nunca vou ser uma militante tão empenhada, nem ter o entendimento político tão lúcido e sucinto quanto o deles. Eu não me importo com isso hoje, mas entre os 15 e os 22 eu queria ser tão incrível quanto eles. A depressão fez eu me ver constantemente a sombra deles, e ser apresentada por outros da minha organização como "filha de" não ajudou em nada. Eu acabei procurando outros espaços, longe da militância, mas esses espaços só serviram pra aprofundar mais ainda minhas inseguranças. Não mais tão protegida, eu finalmente tive contatos com o preconceito do qual fui protegida, com pequenos horrores com os quais eu não estava pronta pra lidar. Quando eu voltei pra militância já tinham arrasado minha confiança, todos a minha volta pareciam maquinas de revolução, e eu não conseguia nem cumprir prazos da faculdade. Com que cara eu falaria das minhas angústias e pediria ajuda a eles? Eu mantive (e ainda mantenho em parte) minha vida dividida em duas. Meus amigos me ajudavam a lidar com as angústias que eu carregava, e meus companheiros de militância me ajudavam a lidar com a frustração de não conseguir acabar com certos preconceitos no meu circulo mais íntimo de amigos (hoje isso já foi resolvido, ainda bem).
Não é fácil tratar depressão. Não é fácil tratar depressão quando você está inserido dentro de espaços em que você também precisa ser o “ajudador”. Na militância de esquerda eu achei um lugar pra me encaixar. Eu não era subestimada por ser mulher, eu não era rejeitada por gostar de garotas, e eu não era diminuída por não alcançar aqueles padrões estéticos tóxicos. Não me lembro de me sentir tão “no lugar certo” como na primeira vez que fui sozinha, por conta própria, para uma reunião da Kizomba Mossoró. Mesmo hoje, sempre que encontro uma das companheiras e companheiros que estavam naquele dia, eu não consigo evitar o sorriso, mesmo quando eu estou triste por razão alguma. Ser aceita e apreciada sem precisar fazer qualquer esforço pra me encaixar, sem precisar calar nenhum pensamento “muito progressista”... Foi algo que nem meu refúgio virtual conseguiu me trazer.
Entrar pra militância me ajudou na melhora antes mesmo de eu perceber que tinha um problema. Mas quando eu percebi, quando eu comecei de fato a me tratar, a militância não foi apenas uma ajuda, mas também uma distração do problema. Eu não estou dizendo que a militância faz mal, de maneira nenhuma. A depressão é uma doença silenciosa, e muitas pessoas veem os problemas como combustíveis para ela, mas não se trata disso. Em terapia, tanto com um psicólogo como com um psiquiatra, eu escavei o início da minha depressão aos 16 anos. Quais eram meus problemas nessa idade? Um coração partido? Notas vermelhas? Meus pais estavam tentando mudar o mundo, meus amigos estavam empenhados em projetos, ganhando medalhas por desempenho e eu estava falhando. Mas meu fracasso não era o fim do mundo, não era tão relevante, haviam coisas maiores. E de fato, haviam. Não era mesmo o fim do mundo. Eu me formei apesar das notas ruins, eu me casei apesar das vezes em que quebrei meu coração. Mas dentro de mim eu sentia esses pequenos problemas muito maiores, e fora de mim eu fingia não ligar pra eles, e guardava toda aquela tristeza porque havia coisas mais importantes.
Esse processo se estendeu até a faculdade. Eu não via a hora de sair de casa, provar da liberdade. Beber quando eu quisesse, fumar sem ter que me esconder, ficar chapada sem ter que dar satisfação. Eu não queria liberdade, eu queria me anestesiar e nada disso eu poderia fazer perto de quem me conhecia, ou eles veriam que eu tinha um problema, e eu precisaria admitir que eu tinha um problema. Eu me senti culpada por desperdiçar meu tempo assim, apenas seis meses depois de começar a morar sozinha. Eu me sentia culpada por sair pra me distrair com pessoas que não viam nada de errado com o mundo, mas também me sentia culpada quando, junto da militância, me via fazendo tão pouco enquanto meus companheiros faziam malabarismos incríveis com suas obrigações e ainda se doaram de corpo e alma para a luta. Eu ouvia as piadas e comentários preconceituosos, e se falava algo me dava logo por vencida pela enxurrada de argumentos sem conteúdo que se seguia. Eu participava de debates inspiradores, seguidos de comportamentos não condizentes e totalmente insensíveis para com a saúde emocional do próximo, tudo no mesmo ambiente.
Eu demorei a entender porque eu demorei a procurar ajuda. Eu me sentia incapaz por precisar de ajuda, e queria provar que era capaz como minhas companheiras, como meus pais, como todas aquelas pessoas que estavam em situações muito mais vulneráveis que a minha, e ainda assim levantavam todos os dias para encarar a vida de cabeça erguida.
Dentro da militância de esquerda não há nada mais indispensável do que a empatia e solidariedade. Não existe qualquer outra razão para levar alguém a compreensão de uma injustiça. Uma pessoa em posição de privilégio não vai se empenhar para que seu privilégio vire um direito, a menos que possua o mínimo de solidariedade dentro de si, porque não desejar o mau pra ninguém, não significa que você deseje o bem pra todos. É a nossa preocupação principal que acaba nos fazendo negligenciar outros que também precisam da nossa atenção, especialmente nós mesmos. Nós julgamos algumas ausências na luta, e lamentamos apenas a perda da ajuda para esse duro fardo que é acreditar e efetivamente tentar fazer algo para mudar o mundo. Não quero aprofundar e nem jogar a culpa pra alguém. Pessoas com depressão se tornam peritas em disfarçar, em fingir que esta reagindo e reagindo bem. Precisamos ser assim, porque ver alguém preocupado com nosso estado agrava ainda mais a culpa de sentir o que sentimos. Nossa primeira resposta é sempre dizer e aparentar estar bem, porque explicar o que sentimos é impossível, e falar sobre isso, mesmo com um amigo, mesmo com alguém que entende, é muito difícil. Para quem está ao redor, não é fácil ver algo que não se está procurando. Os sinais só ficam evidentes em nossas lembranças quando o pior quase, ou já aconteceu. Não é que como grupo a militância não se preocupe com a saúde mental e emocional, muito pelo contrário. Mas como saber o que o outro passa ou sente se ele ou ela não expressa? E como expressar as angústias com injustiças para pessoas que sofrem com as mesmas injustiças ou até injustiças piores que as suas? É difícil ter uma resposta ou solução. Eu, particularmente, não tenho. É algo com o qual ainda tento lidar todo dia.
Em 2016 nossos problemas pessoais se transformaram em nada. Nossa depressão, angústia, coração partido e desejo de não levantar da cama tinha um só nome, golpe. Se antes não tinhamos “tempo” pra lidar com nossos problemas pessoais porque um deputado fascista estava com a popularidade alta falando em chacinar a periferia e bostejando racismo, machismo e homofobia, hoje nós continuamos sem tempo porque o trabalho escravo no Brasil foi legalizado, mulheres podem perder o pouco de autonomia que alcançaram e LGBTs estão sendo caçados e dizimados com licença da sociedade. Nunca é e nunca será um bom momento para os nossos problemas, nossas fragilidades emocionais, especialmente dentro da militância. Isso não é culpa dos outros… Não é culpa da luta… Não é culpa nossa. Sofrer ao ver os outros sofrerem é um “dom” de poucos. Sofrer ao pensar no sofrimento de pessoas que você não conhece é mais raro ainda, e um ambiente perfeito para o vírus da depressão se multiplicar.  
A depressão não escolhe classe, não escolhe gênero, ideologia política, cor e nem orientação sexual. Mas não é errado pensar que dentro dos grupos socialmente marginalizados somos mais vulneráveis, dentro da militância, com a empatia e a solidariedade que nós tentamos tão arduamente manter e espalhar, nos tornamos mais suscetíveis. Não é porque somos mais fracos, mais irracionais, menos centrados, mas porque guardamos nosso sofrimento individual na gaveta para priorizar a luta contra um sofrimento coletivo. Todo mundo já espaireceu dos próprios problemas “ocupando a cabeça”, mas e quando sua distração do sofrimento é mais sofrimento? Nos esquecemos que quase sempre estamos no início ou no meio desse sofrimento coletivo, nunca no final. Sabemos objetivamente que a luta social é contínua, que com certeza não estaremos vivos para ver um mundo livre de opressão, mas subjetivamente esperamos essa luta acabar para nos empenharmos mais na nossa luta particular.
Hoje eu me sinto melhor do que três ou quatro anos atrás. Eu mantive (e ainda mantenho) uma distância defensiva, mesmo nas áreas que mais me dão prazer militar. Mas enquanto eu tento me envolver menos na militância para cuidar de mim, ainda sou atormentada pela culpa de não estar fazendo tudo que eu poderia pra mudar o mundo. Eu ainda acho que essa culpa não vai me deixar, mas hoje eu consigo pensar nela de modo mais prático. Eu consigo pesar mais precisamente os meus limites emocionais, as pressões e cobranças com as quais eu posso lidar. Hoje eu consigo enfrentar uma decepção de maneira mais saudável. Eu tive sorte… Eu tive pessoas que perceberam, eu tive pessoas que ajudaram mesmo quando eu recusei ajuda. Nem todo mundo tem sorte. E quando alguém morre a dor exige um culpado, alguém para quem podemos direcionar todos os nossos sentimentos negativos. A culpa as vezes é dada a vítima, as vezes a quem está perto dela e não percebeu sua doença, ou para aqueles que cobravam e pressionavam. A culpa é do mundo, porque as pessoas sensíveis o bastante pra empenhar a vida em melhorá-lo são também aquelas que acabam psicologicamente massacradas pelo horror que há nele. Mas se revoltar contra o mundo também não resolve o problema.
Saber lidar com o que está além do nosso controle é um ponto crucial para nossa saúde emocional, não apenas para aqueles que têm depressão. Infelizmente, nesse caso, não existe luta coletiva, apenas batalhas individuais nas quais os ambientes e as pessoas ao redor podem ajudar ou piorar, mas nunca lutar por você. Não existe culpa, e não existe cura, a não ser aquilo que já fazemos em busca de um mundo diferente… Fazer o máximo que podemos e ter esperança de que as coisas vão melhorar.

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