quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Aquela dose de amor

Um certo dia eu estava
Ao redor da minha aldeia
Atirando nas rolinhas,
Caçando rastros na areia,
Atras de me divertir
Brincando com a vida alheia.

Eu andava mais na sombra
Devido ao sol muito quente,
Quando vi uma juriti
Bebendo numa vertente.
Atirei, ela voou.
Mas foi cair lá na frente.

Carreguei a espingarda,
Saí olhando pro chão,
Procurando a juriti
Nos troncos do algodão,
Quando surgiu um velhinho
Com um taco de pão na mão.

O velho disse:-"Senhor,
Não quero lhe ofender,
Mas se esta com tanta fome
E não tem o que comer,
Mate a fome com este pão,
Deixe este pássaro viver."

Eu disse: -Muito obrigado,
Pode guardar o seu pão...
Eu gasto mais do que isso
Com a minha munição.
Eu mato só por prazer,
Eu caço por diversão.

O velho disse: -"É normal
Esse orgulho do senhor
E todo esse egoismo
Que tem no interior.
É porque falta no peito
Aquela dose de amor.

Se eu tivesse botado
Ela no coração,
Você jamais mataria
Um pardal sem precisão,
Nem dava um tiro num pato
Apenas por diversão."

Eu fiquei muito confuso
Com as frases do ancião.
Aquelas suas palavras
Tocaram meu coração
Derrubando meu orgulho
E a vaidade no chão.

Me vali da humildade
E disse: -Perdão, senhor,
Desculpe a minha arrogancia,
Mas, lhe peço, por favor,
Que me conte essa historia
Sobre essa dose de amor.

O velho disse: -"Pois não.
Vou explicar ao senhor
Porque mesmo sem querer
Sou o maior causador
De hoje em dia o ser humano
Ser tão carente de amor.

Isso tudo aconteceu
Há muitos seculos atras
Quando meu Pai fez o mundo
Terra, Mares, Vegetais.
Me pediu pra lhe ajudar
No ultimo dos animais.

Pai me disse: -"Filho, eu fiz,
Da formiga ao pelicano;
Botei veneno na cobra,
Bico grande no tucano,
Agora estou terminando,
Este animal ser humano.

Mas ficou meio sem graça
Este animal predador...
O couro não deu pra nada,
A carne não tem sabor,
Na cabeça tem juízo,
Mas, no peito, pouco amor.

Por isso que eu lhe chamei
Pra você lhe consertar,
Botar mais amor no peito,
Lhe ensinar a amar,
E tirar dessa cabeça,
O desejo de matar."

Depois disse: -"Filho vá
Amanhã la no quintal,
Na casa dos sentimentos,
Perto do pote do mal...
Traga a dose de amor,
E bote nesse animal."

De manha eu fui buscar
Aquela dose sozinho,
Mas na volta me entreti,
Brincando com um passarinho.
Perdi a dose de amor
Numa curva do caminho.

Quando eu notei que perdi,
Voltei correndo pra trás,
Procurei por todo canto,
Mas cadê eu achar mais.
Ai eu fiz a loucura
Que toda criança faz.

Voltei, peguei outra dose
Igualzinha a do amor,
Um vidro da mesma altura,
O rotulo da mesma cor...
Cheguei em casa e botei
No peito do predador.

Mas logo no outro dia
Meu Pai sem querer deu fé
Do animal ser humano
Chutando um sapo com o pé
E no outro ele mangando
Dos olhos do caboré.

Vendo aquilo Pai chorou,
Ficou triste, passou mal,
Me chamou e disse: -"Filho,
O bicho não tá normal.
O que foi que você fez
No peito desse animal?"

Quando eu contei a verdade
De tudo aquilo que eu fiz,
Pai disse tremendo a voz:
-"Eu sei que você não quis,
Mas você botou foi ódio,
No peito desse infeliz.

Esse bicho inteligente
Com esse ódio profundo,
Com pouco amor nesse peito
Não vai parar um segundo,
Enquanto não destruir
A ultima celula do mundo."

Depois daquelas palavras,
Chorei como um santo chora.
Quando foi à meia noite
Eu sai de porta fora
E nunca mais eu pisei
Na casa que meu Pai mora.

Daquele dia pra cá,
É esta a minha pisada,
Procurando aquela dose
Em todo canto de estrada,
Pois, sem ela, o ser humano
Pra meu Pai não vale nada.

Sem ela, vocês humanos,
Não sabem dar sem pedir,
Viver sem hipocrisia,
Ficar por traz sem trair,
Nem distante do poder,
Nem discursar sem mentir.

Sem ela, vocês trucidam
E batizam os crimes seus.
Na era medieval
Queimaram bruxas e ateus
E perseguiram os hereges
Usando o nome de Deus.

Sem ela, foram pra Africa,
E fizeram a escravidão...
Com os grilhões do preconceito
Escravizaram o irmão
Com a espada na cintura
E uma bíblia na mão."

O velho disse: -"Perdoe,
Ter tomando o tempo sei.
Concertar vocês, humanos,
É um problema só meu."
Ai o velho sumiu
Do jeito que apareceu.

E eu fiquei ali em pé
Coçando o queixo com a mão
Pensando se era verdade
As frases do ancião
Ou se tudo era um fruto
Da minha imaginação.

E naquele mesmo instante
Vi passando na estrada
A juriti que eu chumbei
Com a asa quebrada,
Mas não tive mais coragem
De atirar na coitada.

Joguei fora a espingarda
Voltei olhando pro chão
Procurando aquela dose
Nos troncos do algodão
Pra guarda-la com carinho
Dentro do meu coração.

Se acaso algum de vocês
Tiver a felicidade
De encontrar aquela dose,
Eu peço por caridade
Derrame todo o sabor
Daquela dose de amor
No peito da humanidade.

{Dez cordeis num cordel só - Antonio Francisco}


Eu sei que muita gente esperava que eu fosse falar de eleições, ainda mais diante da revirada que deu o primeiro turno. Por outro lado, eu estou um tanto quanto cansada de discutir politica por hora, muita confusão e quase ninguém sabe debater tranquilamente sem partir para o xingamento.
Diante de tantas ofensas que tenho ouvido nos últimos dias, me apeguei as minhas raízes e comecei a ler um livro de um autor da minha cidade natal. E pra quem acha que nordestino é burro, só posso lamentar, porque não tem pessoa mais simples do que aquela que escreveu este cordel, e na minha humilde opinião de nordestina, expressa muito bem a minha indignação com as ofensas dirigidas ao povo da minha região ultimamente.

Aproveitem todos. Ainda vou por outros cordeis dele aqui, e antes do segundo turno, falo sobre politica xD


P.S.: Pra quem não sabe o que é cordel... "Literatura de cordel é um tipo de poesia popular, originalmente oral, e depois impressa em folhetos rústicos ou outra qualidade de papel, expostos para venda pendurados em cordas ou cordéis, o que deu origem ao nome originado em Portugal, que tinha a tradição de pendurar folhetos em barbantes. No Nordeste do Brasil, o nome foi herdado (embora o povo chame esta manifestação de folheto), mas a tradição do barbante não perpetuou. Ou seja, o folheto brasileiro poderia ou não estar exposto em barbantes. São escritos em forma rimada e alguns poemas são ilustrados com xilogravuras, o mesmo estilo de gravura usado nas capas. As estrofes mais comuns são as de dez, oito ou seis versos. Os autores, ou Cordelistas, recitam esses versos de forma melodiosa e cadenciada, acompanhados de viola, como também fazem leituras ou declamações muito empolgadas e animadas para conquistar os possíveis compradores." (fonte: Wikipédia)

Um comentário:

  1. Que coisa linda! Com certeza, de longe, Antônio Francisco é um dos melhores cordelistas brasileiros, ever! O cara é muito bom mesmo! Sabe como tocar o coração!
    Assim como você, caríssima zz, sou nordestino, e você sabe disso, afinal somos conterrâneos. Devo dizer que o resto dos brasileiros falarem mal de nossa região é tão mesquinho e egoísta ao ponto de nem sequer reconhecerem o fato de que o NOSSO Brasil nasceu aqui, como disse, O NOSSO BRASIL. O Brasil é dos brasileiros, não dos nordestinos, sulistas, nortistas, ou seja de onde seja que você venha, você é brasileiro, assim como todos somos. Ninguém é melhor do que ninguém se tratando de poder aquisitivo regional. Isso realmente não importa. Se todos nós esquecessimos nossas desnecessárias "diferenças", nem que fosse em época decisiva, como eleição, o NOSSO país já teria mudado bem mais, de forma bem mais rápida. O que não me faz entender porquê ninguém nunca pensa nisso e só pensa em si.
    Antes o nós, depois o eu.

    Salve, salve, zz!
    Abraço! =*
    s2

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